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Sumire Sakabe

Birmingham - Inglaterra
49 anos, médica

Japão- Brasil, escala em Moçambique: o negro se desbota em sépia e ilumina


Era daltônico o avô fotógrafo de quem herdei esta e outras tantas histórias. Eu, que nunca me cansava de lhe perguntar as cores, só para saber como as via, há tempos me pergunto em que cores ele via suas memórias. De pequena, no meu imaginário, são desbotadas, em tons de sépia, feito fotografia velha tirada na loja que ele e seu irmão montaram em São Paulo.

Trouxeram no navio a vida inteira nas malas (conforta-me saber que o essencial se carrega consigo), vindo de Nagoya, como tantas outras famílias (como a do Tavinho Omati, cujo depoimento me inspirou, num dia desinspirado, a escrever aqui).

Bisavó Namie Kajita (Kato ao casar-se) veio grávida da menininha que em terras brasileiras nasceria para morrer poucos meses depois. Hibaatian (bisavó) entregara a filha para um casal também japonês que, sem sucesso, tentava conceber. Hibaatian entendeu que assim aumentava as chances da filhinha vingar. Era demais trabalhar na lavoura, amamentar um bebê e criar três outros meninos tendo perdido o marido ainda no navio do que soa, segundo relatos, apendicite. Consigo manteve seus três filhos homens.

Meu avô Kazuo, o mais velho, na ocasião com onze anos , foi então nomeado o homem da casa. Pois o homem da casa não passava de um garotinho que deixara a escola, seus amigos e seu mundo mar atrás. No meio do caminho, aportaram em Moçambique, para o sepultamento do seu pai. Em negro vívido me descreveu a chegada na África. Meu avô vivera até então num mundo racialmente monocromático e sequer desconfiara existir gente de outra cor, cabelos crespos, olhos diferentes dos nossos. Ele me contaria do medo incontrolável ao ver os homens negros no porto. A bem da verdade, lhe foram necessários longos instantes (e uma explicação vinda da Hibaatian) para entender que aquelas figuras eram humanas. Assim meu avô descobriu existirem negros na África.

A família instalou-se nos arredores de Marília, interior do estado de São Paulo, onde plantavam algodão e criavam bicho-da-seda. O avô que sempre sonhou em ser historiador contava da sua dor em criar os bichos que lhes sustentava sabendo que, durante a Segunda Guerra, eram usados para a fabricação de pára-quedas usados pelos soldados aliados (meu avô discordaria desta denominação; a seu ver os soldados em questão eram inimigos, por razões óbvias). Ele, que perdeu primos e colegas de escola do outro lado da guerra, sentia-se traidor da sua Pátria. E outras dores esta guerra ainda causaria. Hibaatian manteve os livros que haviam vindo no navio enterrados no quintal, para que não fossem confiscados quando as regulamentações contra comunicar-se em língua de países do Eixo ficaram estritas. Penso vir daí o senso de valor que temos na família, gerações à frente, em relação a livros.

Minha mãe nasceria ainda na lavoura. Ainda bebê, mudaram-se para São Paulo, onde um a um os três filhos da Hibaatian fizeram curso de fotógrafo e finalmente abriram a Foto Clíper, na Freguesia do Ó, e uma outra loja em Santana.

O plano de juntar dinheiro e voltar para o Japão morreu na praia como meu bisavô, tendo esbarrado no dinheiro apertado e na guerra que destruiu o Japão que eles conheciam. Nunca perguntei para Hibaatian se deu tempo de chorar. Eu sei que ela nunca entendeu bem esta cultura barulhenta da Terra de Santa Cruz. Mas aprendeu a fazer um feijão como ninguém (que a gente comia com shiro gohan, bife e inhame cozido no shoyu), enterrou o marido em Moçambique, desenterrou os livros na Freguesia do Ó, criou seus meninos. Estes por sua vez mandaram seus filhos para universidade - veja lá os livros outra vez. Ficou então fácil para meus irmãos, meus primos e eu, filhotes desta mistura cultural bem sucedida, nos espalhamos mundo afora, colhendo os frutos do trabalho desta brava gente (na terra) brasileira.

Meu avô daltônico, bem, este fez as delícias da minha infância. E anos atrás, já médica, ele me daria sua última lição - de como se manter grande e reconhecer que vez por outra, a medicina perde. E que ainda assim, com tantas perdas, a vida é rara e os pequenos prazeres, comendo sashimi de lula, são impagáveis. Esta história me ilumina a cara e o corpo inteiro - e me remete à cor com a qual eu vi a África. Mas esta é outra história.


Enviada em: 19/09/2008 | Última modificação: 19/09/2008
 
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Comentários

  1. Mario Katsuhiko Kimura @ 20 Set, 2008 : 17:49
    Li atentamente a historia de sua família feita com maestria, com certeza por ter herdado o tino de historiador do seu avô. Historia de muita luta, galhardia, de sucesso por ter conseguido formar filho medico, objetivo difícil para muitas famílias da época. Parabéns por você ser o orgulho de sua família e sobretudo por pertencer a geração de nikeis que continuam a batalhar para engrandecer a raça, para que os sucessores da terra do sol nascente tenham vida melhor no Brasil. Torcemos para o seu sucesso e que os serviços prestados como voluntariado lhe tragam muitos conhecimentos para utilização na sua área de atuação. Parabéns, seu pai, onde quer que esteja, está muito orgulhoso de você. Nós também temos muito orgulho de você.

  2. Vinicius Suguri @ 22 Set, 2008 : 13:06
    Parabens por t~ao bela hist'oria contada de um jeito que s'o vc sabe

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