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Ana Paula Akemi Matsuda Morioka

São Paulo / SP - Brasil
55 anos, Secretária

OLHAR DE QUEM SABE O QUE QUER E ONDE VAI CHEGAR


Ela só tem sete anos, mas é esperta que só ela! Olhos inteligentes, de quem sabe o que quer e onde vai chegar, mas por enquanto, só vai chegar até o fogão à lenha arrastando a velha caixa de tomate vazia para servir de escadinha e poder alcançar as panelas de ferro pesadas. As roupas largas, meio encardidas e longas demais para seu pequeno tamanho só atrapalham o serviço, mas não reclama. Não há tempo para reclamações. São (por enquanto) três irmãos abaixo dela e mais seus pais para alimentar e depois do almoço e da louça limpa, ainda tem as roupas para passar com o ferro a carvão. Vocês têm idéia do peso de um ferro a carvão? Daqueles de ferro mesmo, que um adulto mal consegue erguer com uma das mãos? Pois é este mesmo que a pequena Hiroko deve utilizar para passar as roupas da família. A mãe está atendendo fregueses na pequena mercearia da família, um cômodo contíguo à casa. O pai, sempre preocupado e severo, luta na cama contra uma úlcera que não o deixa produzir o que gostaria e cuidar da família; preocupação esta que só faz agravar seu estado. Viera do Japão jovem e sozinho, apenas acompanhado por tios e parentes, com espírito desbravador e aventureiro. Pretendia ficar por aqui mesmo. Não viera para voltar logo ao Japão, então, conhecendo uma jovem da mesma província de origem, Saga, casou-se aqui mesmo no Brasil; aprenderam o mais rápido que puderam a tão estranha língua portuguesa e lançaram-se ao comércio. Ele, primeiro trabalhando como ajudante num distribuidor alimentício em Pereira Barreto, depois já montando seu próprio empório em Araçatuba.

A velha caixa de madeira é arrastada novamente, agora para o tanque. Toda aquela roupa precisa ficar branquinha ao ser insistentemente esfregada e tem que ser estendida antes do sol se pôr. A intenção é que seque todinha até o cair da noite. Hirotiam nem se importa com as gotas de suor que caem de sua testa e misturam-se à roupa ensaboada, afinal, tudo está molhado e tudo irá secar em breve. Tudo pendurado, tudo secando, passa pela casa, olha as crianças, despede-se rapidamente fazendo recomendações à irmã logo abaixo dela para que comande a casa e cuide dos irmãos até ela voltar. Sem perder tempo, alcança sua velha bicicleta, que na verdade ainda é gigante para ela, então tem que pedalar em pé, pois o banco é muito alto! Dirige e se vira bem a nisseizinha que parece carregar o mundo nas costas! Um mundo que pareceu desabar para seu pai com o fim da guerra, a derrota dos japoneses, a humilhação no país estrangeiro, mas que ela tão valentemente decidiu enfrentar com um otimismo e uma determinação sem igual! Ela acredita que tudo sempre dará certo porque está se esforçando para isso. Entra pela porta dos fundos na loja e pega com a mãe as sacolas com as entregas do dia. O difícil é lembrar qual sacola deve ser entregue para qual freguês e ainda saber o endereço de todos! Difícil, mas não impossível para Hirotiam, porque eram desafios e desafios ela sabia bem enfrentar desde que nascera! Sua irmã mais velha havia morrido bebezinha devido às precárias condições de vida da família. Falecera de febre, diarréia, alguma dessas coisas “sem cura” na época, para os imigrantes. Nascer e sobreviver ali já era um grande desafio, então, cuidar da casa, fazer entregas de mercadorias pesadas e para locais longínquos não era diferente. Era só o que conhecia e só o que sabia fazer: vencer novos desafios a cada dia. Também não questionava por quê tinha que fazer tudo na casa sozinha já que entendia que, por ser a mais velha dos irmãos, era responsável por eles. Deixaria de estudar se fosse preciso; até de comer ... assim a haviam ensinado. Mas desde aquela época já tinha um pensamento firme: mulher também tem que estudar, também tem que ganhar seu próprio dinheiro e ser alguém na vida. Como entender e aceitar que só seus irmãos iriam para a escola para um dia serem doutores? Como enfrentar seu severo pai, que achava besteira mulher ir para escola ? “Para que?” Questionava ele. “Mulher tem que se casar e cuidar da casa, do marido e dos filhos. Só precisa saber cozinhar, costurar ... Cuide bem dos seus irmãos para que eles, sim, sejam grandes doutores!” E cuidou. Cuidou de todos eles, meninos e meninas e ainda acumulou serviços extras na mercearia, mas sempre conseguiu um consentimento aqui, uma aprovação ali, ainda que sob protestos, para poder continuar seus estudos. E estudou. E ainda estuda e ainda aprende muitas coisas no alto de seus quase setenta anos, só pela alegria de ser livre para aprender o que quer que seja, o que quer que escolha aprender.

60 anos e duas gerações depois, vejo um menininho de sete anos rechonchudo, bochechas coradas e pés imundos, arrastando uma cadeira pela cozinha para alcançar, no alto do armário branco, na pontinha dos pés, uma xicrinha de café e preparar um remédio caseiro para sua mãe adoentada. Não é nada sério, apenas gripe forte, dor de garganta, mas a preocupação do menino é como se fosse. Papai está em viagem de negócios e quando isso acontece, é ele quem deve cuidar da casa e de todos. Pergunto se quer ajuda para pegar a xícara e tento me levantar da cama, mas ele logo responde, em linguajar bem brasileiro do século vinte e um: “Relaxa, mãe, deixa que eu me viro!”. Trepa com os pés sujos em outro armário para pegar o limão na fruteira, deixando um rastro negro, encardido na porta, mas nem percebe. Seu foco é o remédio para sua mãe. Corta o limão ao meio e o espreme na xícara. Acrescenta mel e gotas de própolis, mistura tudo com pressa e me entrega, na cama, com carinha de preocupado. Deita-se ao meu lado e me olha bem no rosto para ver se enxerga uma melhora imediata. Abro um sorriso para que possa sentir a melhora imediata que me trouxe.

Este segundo episódio remete-me ao primeiro. Não que seja de hoje que o menino haja desta maneira tão prática, tão útil e funcional, mas é que desta vez fiz esta ligação entre estas duas figuras tão singulares. É certo que são situações, épocas e pessoas muito diferentes, mas não sei se por obra da personalidade, hereditariedade ou afinidade mesmo, o mesmo olhar de quem sabe o que quer e onde vai chegar é comum em ambas as personagens: batiam Hiroko e magoo Eric . Não sei ao certo quanto de Moriokas, Matsudas, Egashiras, Enomotos... há naquele corpinho roliço que tanto amo, mas é certo que desta mistura saiu um ser especial e se, como a batiam Hiroko, trouxer tanto bem à tantos brasileiros, japoneses, nisseis, sanseis, yonseis ... o mundo agradecerá e se beneficiará e será muito melhor!


Enviada em: 04/03/2008 | Última modificação: 06/03/2008
 
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Comentários

  1. Mamoru @ 24 Jan, 2008 : 14:50
    Que bom, minha prima escreve tanto quanto fala ^_^ hehehe. E você ainda vai ver seus sobrinhos mestiços e loiros... *_* / Falou bem sobre o pão que o diabo amassou, estou lendo o "Corações Sujos", de Fernando Morais, e "Brasil e Japão", de Tsuguio Shindo (curiosamente, um livro emprestado do seu pai), e francamente, o que os primeiros imigrantes comeram foi qualquer coisa amassada pelo diabo, menos pão. / E que bom que nas suas reviravoltas você voltou às origens, porque tb adoramos o seu sansei gordinho. E falando em origens, já começou a estudar nihongo? / Sabe que aprendi japonês e algumas tradições porque morávamos juntos com ditian e batian. Então, hoje, para preservar a cultura e tradições procuramos ensinar nihongo para as crianças. / O retorno às origens é um fato, à medida que envelhecemos percebemos o quão importante é preservar as raízes.

  2. Takeshi Misumi @ 28 Jan, 2008 : 01:56
    Ana Paula, Parabéns pelo excelente depoimento. Você conseguiu sintetizar tudo que efetivamente ocorreu nestes cem anos de imigração japonesa. Sou nissei e à medida que lia as bem concatenadas palavras, me sentia retratado. É ótimo saber que uma jovem sansei tem um sentimento tão nobre em relação aos antepassados. Está linda a mensagem final que você transmite a todas as demais gerações, que como você escreve para "..sermos cada vez mais cidadãos do mundo."

  3. Ricardo K @ 29 Jan, 2008 : 23:12
    Ana, legal os seus pots! Será que ainda vou resgatar mais minha identidade japoronga e terminar com uma de olhos puxados? Muito bacana também refletir sobre a evolução do conceito de vencer. Quando penso nos meus pais, noto que maior parte de nossos debates são mesmo relativos a diferentes formas de encarar o sucesso. Beijos, Rica

  4. Sílvio Sano @ 30 Jan, 2008 : 14:26
    Prezada Akemi, o seu texto Sou Sansei, já foi uma delícia de ler e definiu bem o "sansei" (sou nissei) como, superada a barreira da luta pela sobrevivência, tb um desbravador, só que, em busca de ocupar, e bem... ou melhor, muito bem, o seu espaço dentro da sociedade brasileira. Daí, quando veio com a reflexão sobre os cem anos, não resisti a te pedir para que leia (em minha história, no Pra Voltar a Ser Feliz) a canção que compus para o centenário em cima do karaokê da cantora japonesa Mariko Nakahira, com a devida autorização dela, inclusive para que Nobuhiro Hirata, cantasse e a gravasse em seu CD, lançado 2 semanas atrás. Minha canção é a síntese do que vc escreveu, ou o que vc escreveu é uma ilustração adequada à minha canção. Abraços.

  5. yukitaka @ 2 Fev, 2008 : 23:22
    Ana, surpreendente como podemos absorver estes fatos na nossa memória. Fatos estes que realmente foram marcantes e que foram sedimentados devido a profundeza dos gestos e dedicação que os nossos antepassados puderam gerir dentro de nós.Jamais imaginamos como eles foram importantes, e damos o devido valor quando eles se partem e deixa-nos um vazio enorme, mas isto é parte da vida e do aprendizado, por isso cabe a nós passar esta essência e conceitos que tanto eles nos deram a esta nova geração, uma vez que isto é fundamental para que o que os nossos antepassados tenham continuidade no trabalho feito, senão virarão cinzas e sem história.

  6. Claudio Tanno @ 28 Fev, 2008 : 21:23
    Ana Paula, parabéns pela sua história, como descreveu o que é ser nissei e sansei. Apesar do modo particular que vivenciou toda influência da imigração japonesa, reflete um padrão de vida que se repete em muitos descendentes. Sou nissei e tenho uma filha, portanto, sansei.

  7. gsjuy @ 17 Mar, 2008 : 10:32
    hkdtdgutckfvjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjj

  8. Maura Matuda @ 16 Abr, 2008 : 07:48
    Olá, minha cunhada (casada com o meu irmão) tbm é Morioka, Onesia Morioka. A Família dela é de Aguaí! De onde você é? Beijos

  9. isabel@27abril,2008 @ 27 Abr, 2008 : 18:54
    ana, também sou sansei, mas sofri muita discrimnação no japan,pois, na verdade, pertenço a outra ilha do japão,e não tenho nenhuma, identidade com, o povo daí.porém, sei que a vida, ainda nos ensina ,muitas coisas, a serem revistas.

  10. fkjhk @ 14 Jun, 2008 : 17:04
    rjyu

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