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Veja, 21/06/1978

Os japões do Brasil

Nossos olhos puxados (continuação)

TALES ALVARENGA

Em São Paulo ou na selva amazônica, as colônias se formam e os japoneses se integram.

As primeiras horas da manhã, as bancas de revista do bairro da Liberdade, no coração de São Paulo, recebem o São Paulo Shimbun, o Diário Níppak e o Jornal Paulista. Editados em japonês, com suas colunas bordadas de ideogramas e uma tiragem total de 75 000 exemplares, esses jornais se destinam principalmente aos 70 000 japoneses e seus descendentes que vivem ou comerciam na Liberdade - o "bairro oriental" de São Paulo, onde se concentra a maior colônia japonesa do Brasil. Maior que a Liberdade, no Ocidente, só a pitoresca Little Tokyo, de Los Angeles, Estados Unidos, informam com certo orgulho os moradores do bairro. A presença de tantos japoneses nesse território central de São Paulo "é um fenômeno que não tem explicação", segundo Kokuro Mizumoto, 48 anos, brasileiro de nascimento e um dos proprietários da agência de viagens Univertur, instalada na Galvão Bueno, uma rua de ponta a ponta ocupada por lojas de japoneses. A explicação estaria talvez no fato casual de que os primeiros imigrantes japoneses que se radicaram em São Paulo foram morar na rua Conde de Sarzedas, na Liberdade, logo no princípio do século. Surgiu uma pensão, um restaurante, uma casa de comércio - e lentamente, por força de uma atração natural, a colônia começou a receber um número cada vez maior de agregados.

Já inteiramente consolidado como reduto oriental, em, 1958, o bairro passou então a ter sua imagem promovida comercialmente pelos membros da Associação dos Lojistas da Liberdade. Para completá-la, havia ali, ainda, um bom número de vizinhos chineses e coreanos. Os turistas, como se queria, foram efetivamente atraídos para o bairro, que em 1974 recebia uma vistosa decoração de rua, providenciada pela Prefeitura paulistana. Um imenso portal vermelho de 10 metros de altura, erigido na rua Galvão Bueno, procura imitar os pórticos dos pagodes japoneses (tori-i). E 450 postes recurvados, também vermelhos, com globos pendurados, fazem-se passar por "lanternas japonesas". "Isso tudo é muito exagerado e nada tem a ver com o cenário de uma cidade japonesa", critica Itsu Yamashita, 43 anos, que nasceu em Tóquio e trabalha atualmente num escritório da Liberdade. Parece forçoso concluir que os enfeites só fornecem mesmo aquela mágica ilusão de se "estar no Japão" a quem nunca esteve no Japão.

SAMURAI - A sensação de experimentar um clima verdadeiramente exótico pode ocorrer, no entanto, quando se entra num dos três cinemas da Liberdade, que exibem filmes quase que exclusivamente japoneses. Ou então quando se visitam algumas das 53 lojas de artigos típicos, como a Casa do Samurai. Entre as muitas preciosidades oferecidas ali pelo senhor Nomura, o proprietário, figuram centenárias e legítimas espadas de samurais, fabricadas por processo ritual tão minucioso que provavelmente se justificam os preços cobrados por elas - 16 000 pela espada mais barata e 65 000 pelas mais caras.

Nada mais fiel ao Japão, todavia, que os restaurantes típicos que se espalham por todo o bairro. Entre eles, poder-se-ia talvez eleger o Yamaga, de interior delicadamente montado com madeira e bambu quase escuros, esteiras pelo chão e divisórias de papel separando os reservados em que se aninham os fregueses, invariavelmente descalços. As garçonetes são chamadas com sonoras palmas. As iguarias, servidas naturalmente em cumbucas, envolvem quase que obrigatoriamente macarrão, arroz branco, soja, camarão, peixe ou carne, e muitos legumes. Os freqüentadores habituais recebem à mesa sua própria garrafa de bebida, com seus nomes escritos sobre o rótulo. Só um neófito ousaria estranhar, nesse restaurante, os pauzinhos que lhe são dados para levar o alimento à boca.

SOROBAN - O japonês, como não podia deixar de ser, é língua de uso corrente na Liberdade e outra das particularidades que o distinguem como o bairro oriental. Em japonês se namora, se discute e se fazem transações comerciais. Para facilitar as coisas nesse terreno, chegou-se a imprimir um catálogo de 348 páginas, da primeira à última em japonês, no qual estão relacionados endereços e telefones de 30 000 membros da colônia. Filhos e netos de imigrantes muitas vezes dominam bem a língua dos ascendentes. E alguns não ficam só nisso. Há, por exemplo, brasileiras de olhos amendoados aprendendo, como suas avós, os segredos do arranjo floral em aulas ministradas a respeito desse delicadíssimo assunto pela Sociedade Brasileira de Cultura Japonesa, estabelecida bem no miolo da Liberdade. Quanto aos rapazes, há os que se exercitam, por exemplo, numa espantosa e milenar habilidade oriental - a arte de manejar a tábua de cálculos, chamada soroban, para multiplicar, subtrair, dividir, tirar raiz quadrada e cúbica. Na rua dos Estudantes, número 15, instalou-se há 22 anos o principal templo dessa prática. Ali, o professor Fukutaro Kato, japonês de nascimento, já formou legiões de especialistas e um gênio, no ramo, o jovem Rubens Koreada, 18 anos, que em 1976 venceu em Tóquio um concurso de soroban.

Joga-se no bairro, ainda, o shogui, definido como o xadrez japonês – 50 milhões de praticantes no Japão e 2 000 em São Paulo. Ali funcionam também algumas dezenas de academias de lutas importadas do Oriente. Mas não se espere, por isso, valentões dando sopapos a torto e a direito nos botequins japoneses da Liberdade. "Ordeiros, educados e respeitadores das leis", eis a classificação fornecida pelo delegado Edde Sanjar, do 5º Distrito Policial de São Paulo, com jurisdição sobre a Liberdade. Há estatísticas: apenas 5% dos casos policiais do distrito envolvem japoneses, número considerado baixíssimo pelo delegado. Sanjar também destrói a mística do bairro oriental povoado de misteriosos antros por onde circulariam o ópio e a heroína - uma suspeita que por muito tempo pesou sobre os habitantes da Liberdade, chineses e coreanos, inclusive.

TRADIÇÕES - Convivendo com brasileiros, de todo modo, os descendentes dos imigrantes japoneses vão inevitavelmente esquecendo tradições. Aparecido de Almeida, balconista da Casa de Velas Santa Rita, especializada em artigos de umbanda e instalada na praça da Liberdade, 248, garante que tem fregueses de nomes como Tanaka, Sato ou Okamoto. A meio quarteirão dessa loja, o Fuji Palace Hotel dispõe de sessenta apartamentos comuns bastante requisitados (380 cruzeiros por pessoa).

Já os quatro apartamentos orientais, com tatamis no chão em vez de camas (600 por pessoa), estão sempre desocupados. Talvez ainda mais significativo, a Igreja Católica São Gonçalo, gerenciada por padres japoneses, conta com freqüência incomparavelmente maior que a do único templo budista tradicional da Liberdade, o Sotô Zenshû - este aos cuidados de quatro monges de túnicas negras e cabeças rapadas.

Bem diferente é a situação de uma colônia mais fechada a influências de fora, como a da cidade de Bastos, município da alta Paulista, a 560 quilômetros de São Paulo, que comemorou na semana passada seu cinqüentenário de fundação. Nascida a partir de uma fazenda de café, de propriedade de um certo Henrique Bastos, que resolveu empregar colonos japoneses, a cidade tem hoje 16 000 habitantes, 9 000 dos quais de origem japonesa. Com essa escassa população, Bastos consegue ser um dos maiores centros fornecedores de ovos do país graças às 4 milhões de galinhas de suas quase 300 granjas. Próspera, a cidade fisicamente nada tem de muito peculiar. Entre os mais velhos, contudo, vigora a preocupação de preservá-la como uma espécie de monumento às tradições japonesas. "Os imigrantes conservam aqui os valores tradicionais muito mais que os próprios moradores do Japão", desabafou à repórter Tânia Mendes, de VEJA, um inquieto secundarista de 17 anos. "Quando nossos parentes mais velhos vão passear no Japão", disse o jovem, "voltam decepcionados, dizendo que não reconhecem mais seu país de origem."

"BRASILEIROS" - Com efeito, a tradição sobrevive em Bastos até mesmo na organização administrativa da cidade, dividida em kumis, ou bairros, à frente dos quais sempre há um líder eleito - misto de subprefeito, pai, conselheiro. Paisagem tipicamente japonesa só se vislumbra, de qualquer maneira, a alguns quilômetros da cidade, nos domínios do agrônomo e granjeiro Yutaka Mizumoto, que erigiu em sua propriedade um perfeito jardim oriental, com laguinhos e árvores anãs..

Nem só em território paulista, no entanto, constata-se a presença de descendentes dos japoneses. Açaí, por exemplo, cidade agrícola do norte paranaense, a 450 quilômetros de Curitiba, tem seus 25 000 habitantes - 70% deles japoneses e descendentes.

É verdade que os "brasileiros" - como são tratados todos os que não pertencem à colônia - raramente assistem às disputas de beisebol entre as seis equipes da cidade. Também só há membros da colônia japonesa nos festivais de canto, os chamados no dojiman. "É que os brasileiros não gostam de nossas festas", explica o contador Shiro Namani, 35 anos, secretário da Sociedade dos Amigos de Açaí. "E nós não levamos muito jeito para o futebol e o samba." Ainda assim, sempre que a colônia japonesa realiza um baile sem músicas folclóricas lá estão bons dançarinos de samba.

"A japonesada é boa gente, o duro é engolir a comida deles", diz sorrindo o jovem Elias Sartori, empregado de um bar da pequena rodoviária de Açaí. A seu lado, um "bóia-fria" que trabalha nas lavouras de algodão, café e soja dos japoneses acrescenta o comentário: "Exigem muito trabalho mas pagam direitinho".

NA AMAZÔNIA - Parece ser mais de molde sócio-econômico a fronteira que separa a comunidade nipônica, hoje proprietária de pequenas glebas, de boa parte dos peões que labutam nas plantações de Açaí - um número variável de bóias-frias vindos de outras regiões e que em certas safras mais pródigas chegam a 4 000 trabalhadores rurais.

Em todo caso, ninguém mais preparado para entender as agruras desses trabalhadores sem terras que o próprio colo no japonês, trazido no passado de sua pátria como mão-de-obra a serviço de fazendeiros do café. Exemplo dessa dura experiência é dado pela vida do próprio fundador de Açaí, Tomota Ikeda, 68 anos, cercado hoje por sete filhos e quinze netos na cidade que plantou em solo paranaense 46 anos atrás. Ikeda desembarcou em Santos no ano de 1927, foi encaminhado para uma fazenda de Ribeirão Preto, depois para outra em Lins, ambas em São Paulo, e nos tempos subseqüentes à crise de 1929 trabalhou três anos em troca apenas da comida, conforme contou ao repórter Pedro Franco, de VEJA. Em 1932, recebeu finalmente algum dinheiro e rumou para uma região bravia, de mato cerrado, no norte do Paraná, hoje Açaí, onde começou a plantar e a progredir por conta própria.

Circunstâncias diversas influem certamente na criação daquilo que se poderia convencionar como sendo o modelo ideal de uma colônia de imigrantes no Brasil. Entretanto, a pequena colônia de Tomé-Açu, constituída por cerca de 600 famílias japonesas que foram se plantar em plena selva amazônica, a 170 quilômetros de Belém, seria talvez um exemplo único no Brasil de uma comunidade japonesa que dá sinais de debilidade. Quarenta e nove anos depois de ter aportado ali a primeira leva de imigrantes para plantar pimenta-do-reino, doenças devastam os pimentais e o mercado internacional já não se mostra tão receptivo ao produto. A colônia, naturalmente, também sofre em sua vitalidade. O aeroporto de Tomé-Açu, por exemplo, anda desativado nos últimos tempos quando anos atrás recebia pelo menos dois aviões por dia.

Célio Apolináriocemiterio Cemitério japonês em Tomé-Açu, no Pará

FESTAS JUNINAS - Mais isolada geograficamente que as outras, mesmo tendo brasileiros instalados na sede do município de Tomé-Açu, essa comunidade acabou se tornando uma das mais fechadas dentre todas no Brasil. Não há como fugir, porém, a alguma integração nem mesmo na distante Tomé-Açu. A prova mais cabal dessa fatalidade está no próprio cemitério oriental da comunidade, cópia dos antigos cemitérios do Japão, onde há muitos jazigos de famílias brasileiras ao lado dos que guardam os restos dos precursores da colônia. O catolicismo e as religiões protestantes também começam a tomar fiéis do monge budista Yoshiichi Yamada, 80 anos, desde 1929 em Tomé-Açu. E, conforme queixa ouvida por Guilherme Augusto, correspondente de VEJA em Belém, os rapazes mais atirados partem para estudar fora e raramente se reintegram à colônia.

Também isolada, a diminuta colônia de Rio Bonito, a 147 quilômetros do Recife, registra uma ruptura maior ainda. Essa comunidade de dezesseis famílias ensinou aos brasileiros da região que as terras que ali se tinham por inóspitas podiam, na verdade, se cobrir de frutas e verduras com correta adubagem e boa irrigação. Em compensação, os japoneses se "Festa tradicional de japonês acabou aqui", disse a Terezinha Nunes, de VEJA, o agricultor Tatsumi Ide, que no entanto não dispensa uma boa noitada ao pé da fogueira junto com seus vizinhos nordestinos por ocasião das festas juninas. São costumes e tradições que se desfazem na medida em que avança a integração. Só os mais antigos perseveram em algumas práticas, com o poeta e lavrador Mário Oda, de Bastos. Aos 80 anos, ele continua produzindo e lendo para amigos os delicados haikais, poemas que falam geralmente da natureza. Amante da tradição de seu país natal, o lírico Oda não deixa, entretanto, de perceber as modificações que ocorreram à sua volta. E, sem reclamar, ele manifesta uma certa tristeza ao comentar que seus descendentes não têm mais tanto interesse pelas coisas do Japão - "nem querem mais aprender a escrita".viram envolvidos com maior força pelos brasileiros.

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