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Thaís Oyama
Fãs de quadrinhos japoneses usam codinome oriental e imitam seus personagens favoritos
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Você é um otaku quando...
- Conhece as medidas, o sotaque, os trejeitos e até o tipo de sangue do seu personagem preferido (informação que, para os japoneses, equivale ao signo de cada um), como a estudante Suzy Costa
- Em conversas com amigos, pontua as frases com expressões usadas pelos heróis de mangás, como “orô?” (para expressar dúvida) ou “hoyoo!” (para mostrar surpresa)
- Sabe cantar, inteirinha e em japonês, a música Dan Dan Kokoro Hikareteku, tema de abertura da última série de Dragon Ball
- Monta um site, escreve cartas e organiza fóruns na internet para protestar contra o fato de, num determinado episódio da série Os Cavaleiros do Zodíaco, o personagem Hyoga ter usado um golpe batizado de Raio de Gelo, quando todo mundo sabe que o seu preferido é o invencível Pó de Diamante
No Japão, “otaku” é sinônimo de menino-problema. Um tipo esquisitão que não tem amigos e passa o tempo todo dedicado obsessivamente a um determinado passatempo. No Brasil, a palavra ganhou sentido bem mais festivo. É usada para designar uma tribo urbana formada por meninos e meninas de cabelos espetados, carregados de chaveirinhos coloridos nas mochilas e unidos por uma paixão comum: mangás, os quadrinhos japoneses repletos de onomatopéias, bons sentimentos, cortes em primeiro plano e personagens de olhos imensos e coração mole.
Otakus, na versão brasileira, têm um fraco por tudo que soe vagamente japonês, conhecem as medidas e o tipo de sangue de seu personagem favorito e, em ocasiões especiais, não se contentam em vestir-se como ele. Andam, falam e se comportam tal e qual seus heróis. A estudante de computação gráfica Suzy Costa, 26 anos e um figurino talhado para se destacar entre os 10.000 participantes que compareceram ao encontro de mangamaníacos realizado em São Paulo na semana passada, gastou dias treinando o passo sereno e a fala pausada de sua personagem predileta, Motoko, a brava lutadora de kendo; de Love Hina. A produção caprichada incluiu um hakama (calça de luta) feito sob medida para ela e um bokken (espada de madeira) comprado no bairro paulistano da Liberdade. Suzy é uma otaku-modelo. Diz pensar em mangás e animes, como são chamados os desenhos animados japoneses, “24 horas por dia”.
Embora não tenha ascendência oriental, costuma pontuar suas frases com expressões japonesas e só se apresenta como Su-Chan (o sufixo “chan”, acoplado a nomes próprios, faz com que eles fiquem no diminutivo: algo como Suzinha, neste caso). O estudante Ricardo Cruz, de 21 anos, outro otaku apaixonado, foi mais longe. Aos 17 anos, conseguiu convencer os pais a deixá-lo morar por um ano no Japão. Aprendeu a língua e hoje, orgulhosíssimo, já pode ler os quadrinhos no original. Ricardo é presença garantida nos encontros de fanáticos por animes: montou um grupo de cantores de karaokê cujo repertório é inteiramente composto de músicas de seriados japoneses. O maior hit da banda é Ore wa seigi da! Jaspion (ou Meu nome é justiça! Jaspion), tema de abertura da série que fez sucesso no Brasil no fim dos anos 80. Os primeiros acordes da canção são suficientes para levar alguns otakus às lágrimas.
Ao contrário dos seriados japoneses, velhos conhecidos do público brasileiro, os mangás são fenômeno recente por aqui. Antes restritos a uns poucos iniciados, estão hoje disseminados por várias faixas etárias, dos muito jovens, que já nasceram acostumados a esse universo através dos desenhos animados da TV, aos que relutam em deixar a adolescência. As duas principais editoras de quadrinhos japoneses do país, a JBC e a Conrad, colocam nas bancas 1 milhão de exemplares por mês. Dragon Ball, o título de maior sucesso entre adolescentes, vende 150.000 cópias. A saga de Goku, o extraterrestre ingênuo que tem por missão defender a Terra, é criação de Akira Toriyama, um dos mais famosos desenhistas de mangás do Japão. Mistura de Walt Disney com J.D. Salinger, o venerado, recluso e ligeiramente amalucado Toriyama já tem até fã-clube no Brasil.
Os enredos dos gibis não mudam muito: são, basicamente, a glorificação das qualidades mais admiradas no Oriente. Os heróis se vêem diante de obstáculos aparentemente intransponíveis e sofrem até perceber que só por meio da perseverança e da união com o próximo vencerão. A maioria das histórias dedicadas às meninas segue a mesma linha — e é de dar urticária em qualquer feminista, com heroínas sempre meigas, magras e modestas. Além, claro, de prontas a se sacrificar em nome dos outros. As personagens femininas em geral têm traços delicadamente erotizados, com sainhas curtas e decotes instigantes, o que ajuda a explicar sua popularidade junto ao público às voltas com os fragores da puberdade.
Ao contrário dos similares americanos, nem todos os personagens de mangás vivem na esfera intergaláctica, travam batalhas em cidades do futuro ou são dotados de superpoderes. Pelo contrário, muitos se caracterizam pela banalidade de suas existências. São meninas que se apaixonam por professores, meninos que não conseguem passar no vestibular e funcionários públicos que têm medo da mulher e fazem reverências ao chefe toda vez que tomam bronca dele. Para a pesquisadora Sonia Bibe Luyten, autora do livro Mangá, o Poder dos Quadrinhos Japoneses, é essa humanidade dos heróis japoneses um dos principais motivos do sucesso dos mangás. “Os personagens vêm do universo real. São tímidos, atrapalhados e míopes”, diz. “Todo mundo se identifica com eles.”
Os japoneses chegaram aqui há um século. Desde junho de 1908, muita coisa aconteceu. Ajude a resgatar essa memória.
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Este projeto tem a parceria da Associação para a Comemoração do Centenário da Imigração Japonesa no Brasil