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Capricho, 1/07/1988

Especial Japão

REPORTAGEM: PATRÍCIA BROGGI E HIROTO YOSHIOKA
TEXTO: ISABEL VIEIRA

Quando desembarcaram do cargueiro Kasato Maru no Porto de Santos, no dia 18 de junho de 1908, depois de 50 dias de viagem, eles eram apenas 781. Na bagagem, traziam sementes, instrumentos agrícolas e a ilusão de uma promessa: enriquecer rapidamente e retornar ao Japão, livres para sempre dos tempos de privação e sofrimento.

Que outro sonho faria famílias inteiras deixarem sua terra e atravessarem o oceano para tentar a vida num país totalmente estranho a seus hábitos, cultura e tradições? Mas não foi um eldorado que esses primeiros imigrantes japoneses encontraram no Brasil. Só mesmo a obstinação e paciência de uma cultura de 2 500 anos fez com que suportassem os primeiros tempos, duros e difíceis.

Trabalhando nas lavouras de café, muitas vezes em troca apenas de comida, eles logo saberiam que os dois sonhos – o da riqueza fácil e o da volta à pátria - precisavam ser esquecidos. E substituídos por outro: construir aqui mesmo uma pátria para os seus filhos. Este sonho, sim, deu certo. 80 anos depois, os 250 mil imigrantes japoneses que entraram no Brasil transformaram-se em 1 milhão de brasileiros de olhos amendoados, a metade vivendo na região metropolitana de São Paulo, e destacando-se não só por sua vocação agrícola mas em todos os setores da vida nacional. Da indústria às artes, da política as universidades, dos meios de comunicação às mais diversas atividades urbanas, estendem-se hoje as marcas que esse povo perseverante e disciplinado imprimiu definitavamente ao país que o acolheu. E que, por sua vez, assimilou seu patrimônio cultural riquíssimo, sua cozinha delicada, seus belos objetos, suas danças marciais. Nesta e nas páginas seguintes está a homenagem de Capricho aos 80 anos de imigração japonesa, mostrando um pouco da contribuição que recebemos desses irmãos que vieram do outro lado do mundo para aqui construir o seu lar.

Olhos orientais, coração brasileiro

Muitas ainda falam o japonês em casa e cultivam tradições herdadas dos avós. Outras se sentem tão brasileiras que só os olhos amendoados denunciam sua origem. São as filhas e netas de nossos bravos imigrantes.

Se Andréia Cristina Inoue dependesse do canto do galo para acordar, chegaria atrasada todos os dias à escola. É que ela se levanta mais cedo que ele, às 4h30 da madrugada. Depois do café, iluminando o caminho com uma lanterna, anda 2 quilômetros a pé até o ponto do ônibus - que passa às 6 h e recolhe garotas e rapazes que vivem na Fazenda 3ª Aliança, distrito de Mirandópolis, a 600 km de São Paulo, para levá-los ao colégio, distante 20 quilômetros dali. Andréia tem 17 anos e cursa o 3º colegial.

Já sua amiga, Lucy Kazue Takehana Satake - 16 anos, 2º colegial -, tem mais sorte. Por não depender dessa condução, pode dormir meia hora a mais e seguir de bicicleta até o centro comunitário da fazenda, onde toma um ônibus de linha regular para ir à mesma escola.

Hiroto YoshiokaLucy
Lucy, na mesma fazenda dos avós, mas a poucos passos da universidade.

Iniciar o dia no escuro nunca foi novidade nessa região do alto noroeste paulista, há mais de 60 anos habitada por imigrantes japoneses que deixaram sua terra para formar uma colônia-modelo - as três fazendas Aliança - no Brasil. A diferença é que tanto os avós de Lucy (os Guennosuke Satake, que chegaram em 1929) como os de Andréia (os Kinnosuke Inoue, vindos sete anos depois) tiveram que dar duro na enxada, cultivando café, algodão e arroz, criando bicho-da-seda e dedicando-se à pecuária e à avicultura para poder sobreviver. E também para proporcionar aos netos benefícios que nem seus filhos tiveram, como estudar, por exemplo.

Apesar de Andréia costumar ajudar o pai na época da colheita do abacate - hoje, a comunidade vive da fruticultura -, a vida das duas garotas é como a de tantas outras que vivem no interior. Além do colégio, Lucy pratica esportes (faz parte da equipe de atletismo local) e estuda balé com uma professora vinda de Tóquio. Ela e Andréia se preparam para cursar uma faculdade e só depois de formadas, e empregadas, pensarão em casamento. Que com certeza será por amor, e poderá até ser com um brasileiro. A tradição do "casamento arranjado" caiu em desuso nas fazendas Aliança: as jovens têm liberdade para namorar quem quiserem. E certo que as famílias prefeririam um genro japonês, mas se até o pai de Andréia já quebrou o costume anos atrás, e sua mãe, brasileira, foi bem aceita pela comunidade!...

Vestindo-se na moda e mantendo-se bem informadas sobre o Brasil e o mundo, pela televisão, as duas jovens conservam-se fiéis, no entanto, a certos hábitos da colônia: falam japonês, não dispensam o "ofurô" (banho de imersão japonês) e usam um "happy coat" (robe curto, estampado com motivos japoneses) nos dias de festa, quando o pessoal se reúne para o "bon-odori" (dança festiva) ou o "nodojima" (concurso de canto).

E um grande sonho permanece: conseguir uma bolsa de estudos para ir, um dia, conhecer a terra de seus avós.

Cristiane: duas raças

Foi exatamente o sonho de visitar o Japão, realizado no ano passado, que fez com que Cristiane Sadakata, 16 anos, aluna do 2º colegial do colégio Bandeirantes, em São Paulo, assumisse definitivamente sua dupla nacionalidade. "Me sinto tão japonesa quanto brasileira", diz Cristiane, que herdou do pai japonês os olhos amendoados, os cabelos lisos, o rosto arredondado e um profundo amor pela cultura do seu país. Mas o temperamento, expansivo e caloroso, é o mesmo da mãe, brasileira. "Os japoneses são muito contidos, não expressam emoções com facilidade. Eu gosto de contato físico, abraçar, beijar, olhar com amor para alguém", explica.

De sua viagem ao Japão, Cristiane - que tem uma irmã de feições tipicamente brasileiras, que não partilha seu interesse pelo lado japonês da família - trouxe uma profunda admiração pelos avanços daquela sociedade. "Como tudo é superorganizado!", encanta-se. "Trens e ônibus cumprem horários; não há lixo nas ruas, há respeito e simpatia!" Fã incondicional da comida e da música jovem japonesa (sua cantora predileta é Akina Nakamori, uma garota de sua idade), ela já resolveu que, depois de entrar na faculdade, vai trancar matrícula e viver um ano no Japão, com os parentes de seu pai.

No colégio em que estuda, sua condição de mestiça é vivida sem nenhuma dificuldade. "É engraçado: lá existem turmas distintas de japoneses e brasileiros", conta. "Eu transito pelas duas. A turma de japoneses me considera brasileira, e a de brasileiros me considera japonesa. Isso não me incomoda, porque eu sou realmente as duas coisas."

Rosana: brasileira

Não é o que acontece com Rosana Cristina Tiba, 21 anos, estudante de Engenharia Civil. Não fossem seus olhos amendoados, ninguém diria que seus avós paternos vieram, um dia, tentar a sorte no Brasil. O único traço que atribui à herança do pai é seu temperamento, um pouco mais calado e tranqüilo que o dos dois irmãos. Só o caçula, no entanto, é ligado às raízes da família. E o único que se interessou em estudar japonês, aprendeu a jogar beisebol e a fazer contas no "soroban", o ábaco japonês, instrumento que torna possíveis todas as operações matemáticas usando bolinhas.

Já Rosana se considera superbrasileira, pois a educação dada pela mãe, loira, prevaleceu em casa. "Nem comida japonesa fazemos, o que é uma pena, pois adoro", lamenta. Seus amigos são, na maioria, brasileiros, e nunca namorou um rapaz de origem japonesa. "Até esqueço que sou meio japonesa. Só lembro quando alguém se refere aos meus olhos orientais", confessa.

Sueli: japonesa

Com os mesmos olhos amendoados - mais puxados um pouco, pois tem sangue japonês pelos lados materno e paterno -, Sueli Yoshioka, 20 anos, estudante de Terapia Ocupacional na Universidade Católica de Campinas, jamais seria confundida com uma brasileira. Sansei (segunda geração nascida no Brasil), ela vem de uma família que até hoje cultiva hábitos e tradições do tempo dos primeiros imigrantes. "Me sinto mais japonesa que brasileira", diz. Sueli sabe somar e subtrair no "soroban", pratica o "soft", modalidade feminina do beisebol, e ajuda o pai, que é treinador do time Shida, de beisebol, a fazer a contagem de pontos. É aficionada em karaokê e participa sempre de campeonatos. Não o karaokê que foi moda há pouco tempo em certas casas noturnas brasileiras. Sueli pratica o karaokê tradicional japonês, cantando música jovem japonesa.

Foi assim que aprimorou seu conhecimento da língua, falada normalmente em casa. Com a mãe, aprendeu também a acender um incenso para pedir proteção à casa; a ter uma máscara do diabo perto da porta, para assustar os ladrões; a colocar um Buda de costas para a porta de entrada, como forma de trazer dinheiro para a família; e, no dia 31 de dezembro, a fazer um "moti", bolinho de arroz enfeitado com cerejas, para que o Ano Novo seja bom.

O namorado de Sueli, Kazuo, é descendente de japoneses, e os outros que teve antes, também. E nem poderia deixar de ser assim, já que ela fará questão de casar-se numa cerimônia bem tradicional, em que os noivos são saudados com discursos e cantos em japonês.

A única hora em que Sueli não se sente japonesa é quando se lembra da rigidez de certas regras; como horários, por exemplo, praticadas no país de seus avós. "Eu não conseguiria ser tão perfeita, mesmo que fosse morar no Japão. Só quando penso nisso é que percebo que também tenho um lado bem brasileiro", confessa.

Paula: espanto com a ordem

O que mais chamou a atenção da modelo brasileira Paula Prandini nos dois meses em que trabalhou no Japão, no ano passado, foi uma diferença fundamental no comportamento das pessoas. "É engraçado", diz Paulinha, "mas os japoneses nos recebem com uma grande distância, apesar da simpatia. Com o correr do tempo, porém, se tornam amigos muito próximos. Já nós, brasileiros, fazemos exatamente o contrário. Somos muito calorosos de início, mas bem difíceis de aprofundar uma amizade." Fascinada pela organização que viu no país, Paula espantou-se sobretudo com a capacidade que o povo tem de viver em grupos, com grande ordem, em espaços exíguos. "No metrô, por exemplo, existem uns funcionários que usam luvas brancas e que têm a função de 'empurrar' as pessoas, com jeitinho, para que caibam todas num vagão muito cheio. Elas ficam muito apertadas, mas se comportam com a maior educação. Nas danceterias que Paula freqüentava havia poucos jovens, e isso a surpreendeu. "Eles levam a vida muito a sério, não bebem, não fumam, parece que passam da infância à vida adulta direto", observa. "As garotas vestem-se como meninas, depois tornam-se mulheres de um estilo mais clássico." A extrema dedicação dos homens ao trabalho também a marcou: "Só depois do expediente, quando se reúnem nos bares para conversar e beber, eles relaxam um pouco", conta.

Sandrinha: um fã japonês

Com apenas 17 anos, a brasileira Sandra Bortolatti já esteve três vezes no Japão, trabalhando como modelo para agências de Tóquio. E aprendeu a amar esse país, com ruas tão limpas como ela nunca viu, e com um povo tão correto que ela podia se dar ao luxo de sair de casa às 3 h da manhã, para fazer compras num supermercado aberto 24 horas, sem nenhum risco de ser assaltada. "Uma vez perdi meu book na rua e fiquei desesperada. Acredita que, no dia seguinte, quem o achou entregou-o na agência em que eu trabalhava?", espanta-se até hoje. Sandrinha, que a princípio julgou as pessoas um pouco frias, logo descobriu que poderia contar para sempre com os novos amigos que arrumou.

Aprendeu a "arranhar" a língua e conquistou até um admirador, o Nori, que, no melhor dos estilos, enviou-lhe um grande buquê de flores. Apesar de ter conhecido danceterias, e convivido com punks, músicos, mímicos e dançarinos numa rua fechada ao trânsito, ela afirma que os jovens da sua idade são mais contidos que os brasileiros, expressam menos suas emoções. "Beijos na rua, abraços, decotes e minissaias a gente não vê nas ruas, de jeito nenhum", diz.

Mas conta também que o japonês gosta de dançar, e muito. "Principalmente quando bebe, aí dança mesmo. Mas é engraçado vê-los na pista de terno e gravata, as garotas de meia de seda, num visual bem-comportado."

Flash Book: beleza oriental

Há cinco anos, Luiz Nobuki Norisawa foi convidado a posar para um comercial- não porque tivesse experiência como modelo, mas por seus olhos orientais.
Foi o que bastou para que Luiz, que é filho de japoneses, resolvesse criar a Flash Book, uma agência de manequins e modelos especializada em belezas orientais. Três anos depois, a Flash Book, que tem nisseis, sanseis e mestiços como 90% do seu pessoal (ela também aceita brasileiros) é a agência mais procurada por quem busca modelos orientais. Para fazer parte do cast da agência, basta levar fotos ou tirá-las lá mesmo, na rua Clodomiro Amazonas, 1258, loja 37, tels. (011) 241-4659 e 533-7821, São Paulo, SP.

Duas gerações de muito talento

Texto de Lígia Sanches

Entre tantos imigrantes e descendentes que se destacam no campo artístico, o pintor Manabu Mabe e a pianista Yukie Nishikawa são dois exemplos de dedicação.

Manabu Mabe veio para o Brasil em 1934, com os pais e seis irmãos. Tinha dez anos de idade e uma enorme paixão pelo desenho, que treinava usando os crayons que vieram na bagagem. O destino desses imigrantes - a exemplo de tantos outros japoneses - foi a lavoura. Os Mabe trabalharam num cafezal na cidade de Lins (SP), e Manabu, ainda adolescente, pintava nos momentos de folga - retratos e naturezas-mortas. Aos 33 anos veio para São Paulo, decidido a investir em sua carreira, e dois anos depois, quando já havia se tornado um pintor abstrato, ganhou o primeiro prêmio da Bienal de São Paulo. Sua obra, de colorido forte, criada com muita energia, conquista o mundo. Mas Mabe, hoje um sensei (mestre, em japonês), é o mesmo. Calmo, apreciador de um bom chá, das conversas com amigos, de uma partida de golfe.

Ele vive circulando entre Nova York, Paris, Londres e Roma, mas prefere morar em São Paulo, numa casa rodeada por jardins orientais. E ali que pinta, com maior gosto nos dias chuvosos, gue lhe recordam os tempos de Lins.

O brilho na música

Yukie Nishikawa, 22 anos, pianista, ganhou uma bolsa de estudos na Alemanha, onde irá fazer um curso de pós-graduação. Como outros sanseis, ela não sabe o idioma de seus antepassados ("mas quero estudar no futuro"), e sua família já perdeu muito das tradições orientais. Formada em piano pela Escola de Comunicações e Artes (ECA), da Universidade de São Paulo (USP), Yukie conta que sempre teve nos pais o apoio que precisava para seguir a carreira de músico. "Tudo é muito difícil para o jovem, e se ele não tiver incentivo não deslancha", diz. Mas hoje ela está muito animada. Vencedora, no fim do ano passado, do 3º Prêmio Eldorado de Música, Yukie viu as portas se abrirem para ela. Foi convidada para uma série de concertos, e já está nas lojas seu primeiro disco (selo Eldorado), com obras de Beethoven e Debussy, compositores que adora.

 
 

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